quinta-feira

O sol do diabo

O sol achou Cândido no canto de uma rua. A luz amarela engoliu as paredes, o chão e tudo à sua volta. Percebeu que estava sozinho, sem a mala, e que sua pele ardia demais. Era ele, o sol, e mais nada.
Passou a mão pelo pescoço quando se lembrou da cachaça. Lembrou-se também da faca, e do resto de pele que ainda lhe restara sob o queixo. A enorme cicatriz era tão real quanto a luz impressionante que derreteu o cenário num fundo amarelo.
No susto tentou berrar, pedir ajuda, xingar alguém, mas não sentiu sua voz sair. Ali não havia nem som, nem cheiro. Só o calor insuportável e a sensação de um fôlego na nuca, numa imensidão amarela de nada. Cândido levantou no desespero, e correu.
Tinha alguém ali, diluido na luz que ardida.

Velozes e amarelos

Se aquela fome era do corpo, o corpo precisava morrer. Cândido, com essa idéia na cabeça, saiu em busca de algum prédio que não ligasse caso um mendigo envolto por um pano de mesa passasse pela portaria. Não importava quanto dinheiro houvesse na carteira, sua imagem era deploravel. Subornar alguém naquele estado era pedir para ser trancado na cadeia, numa jaula à altura do chão.

Muitos passos foram dados até ver a luz que cegava. Entupido de ódio, abriu a bocarra na direção do horizonte:

- Chama do inferno!!! Me fez virar bicho nessa cidade! Me fez ficar louco!
"Todos vocês são bichos."
- Eu comi GENTE seu filho da puta!
"Comeu gente, assim como sempre comeu galinhas e vacas e cabras de onde você veio. Como Eu disse, todos vocês são bichos."
- Vaca não conversa comigo! Galinha não paga meu salário! Porra, porque essa fome não passou se eu comi o que sempre comi?!?
"Porque Eu preciso de você desse jeito. O diabo não bota medo em ninguém chupando um osso de galinha."
-EU? Por que eu?? Porquê não o cozinheiro da lanchonete?? Ou a gorda que tava lá sentada??
"Você põe medo nas pessoas. Lá, no lugar de onde você veio, você era grão de areia. Aqui, você é um caco de vidro perdido na praia."
- Chega! Eu vô me matar!
"Você já está morto Cândido. Escolhi você justamente pela forma que você morreu."

Cândido gelou até onde dava. Passou a mão pelo pescoço e pela primeira vez sentiu a profundidade do corte que havia ali. Se estava vivo, ou como se fosse, só se fosse por intervenção divina.

Cândido pôs-se a correr em direção ao nada amarelo. Trombava em coisas que não via, talvez pessoas ou postes, e chorava. Sentiu sua perna esmigalhar, seus braços se partirem, a coluna sair do lugar, e num instante percebeu que estava no ar. O corpo mole rolou pelo chão, rasgando a pele e partindo os ossos que sobravam conforme tocava o asfalto.

Não podia ver os carros que agora tentavam desviar de seu corpo estirado na avenida. Cândido notou que não sentia dor e que realmente não tinha morrido. Como se o Sol fizesse uma piada de mal gosto, notou que ainda via o nada amarelo.

O demônio sangrento

Ele sugou o pescoço picotado de vários. O sangue salpicava as paredes da lanchonete como confetes em fim de carnaval. Cândido exibia um rosto satisfeito, até se tocar que aquele tipo de festa só era bonita para ele. Olhou para fora da porta, procurando por algum curioso que não entende o que é fome de verdade.

Havia um. Ao virar o pescoço, viu que haviam mais cinco ingratos, de sapatos brilhantes, ternos puídos e cabelinhos arrumadinhos. Eles avistaram a figura do demônio, com a cara vermelha cor de sangue e dentes amarelos. Os mais sensatos já não estavam mais por lá quando o demônio arremessou os pontiagudos na direção da porta.

Cândido roubou o pano de uma mesa, se enrolou nele e enfiou sua cara na pia para lavar o sangue novamente. Observou os restos de comida que afundavam na água enquanto pensava no que viria a seguir. Seria linchado na rua pelos pedestres...Sofreria uma morte horrivel às custas da fome.

Medo de altura, salto, frio na barriga, vento, vento, vento, chão, parede, janela, carro, cabelo. Esse parecia o fim da fuga. Pensou em se matar.

Carne de papel

Rangeu os dentes e os segurou dentro da boca. Cândido queria fugir da fome de pessoas e foi atrás da fome convencional, que ele sempre conhecera muito bem. Uma lanchonete ou um boteco bastam, uma saladinha basta, um pãozinho basta...E um pouquinho de carne também não faria mal.

- Qual vai ser chefe?
- Me vê um X-Tudo. Dá pra colocar mais um hamburguer?
- Dá, mas aí é mais R$1,50.
- Tá, então bota mais dois e manda bala. Vai ligeiro!

O chapeiro sacou os hamburgueres da geladeira e foi à chapa. O cheiro de carne frita aguçou o apetite errado, e Cândido não conseguiu tirar os olhos do pescoço do cozinheiro. A chapa derretia o homem, revelando por baixo de pele, gordura e músculos uma enorme artéria saltitante. O sangue balançava as paredes do vaso sanguineo num movimento hipnótico.

Sorte do chapeiro ser tão bom no trabalho. Por educação e boas maneiras, embora ainda desejasse o pescoço, Cândido abocanhou o sanduiche. A carne que tocou sua lingua não tinha gosto de nada. O lanche inteiro parecia feito de papel.

Pediu mais três sanduiches (bem sangrentos), uma coxinha e um ovo azul, e a fome ainda estava lá. Queria avançar no chapeiro e rasgar seu pescoço com um garfo. Sem ver, dilacerou o pescoço do chapeiro e de mais três clientes para saciar a fome bruta.

Zé São

Já era noite quando saíra do beco. Com aquela jaqueta vistosa, seria melhor andar como se não fosse um mendigo. Camuflou-se na multidão que enchia a praça e se sentiu, finalmente, gente daquele lugar.

No escuro da praça uma chama laranja explodia e sumia. Pequeno vagalume do inferno, pensou Cândido: Tudo que brilha é prenda do Tinhoso! Mas a cada movimento do vagalume , ouviam-se aplausos e gritos de euforia. Não podia ser coisa do demônio.

- Obrigado, obrigado. Quem puder ajudar é só colocar uma moedinha na chapeleta ali, oká?

Era inofensivo, mas ainda era coisa do diabo. Cândido não precisava de uma confirmação, mas bateu o olho na plaquinha perto do chápeu. "Zé São, artista de rua". Naquela hora, concorrência era a cereja do bolo diabólico.

O número agora envolvia facas. Zé São exibia um corpo gigante, oleoso e sem marcas. Os olhos e os dentes da platéia esperavam por um acidente, mas fazia parte da apresentação frustrar os espectadores. O dinheiro deles valeria mais sem gastos médicos.

A fome avassaladora só é chamada assim porque não respeita nada. A pontada no estômago fez Cândido despertar da inveja para o desespero. Estava diante de muita gente, e isso o lembrou da sua última refeição. A fúria da fome engolia sua moral e fez tudo parecer um grande banquete.

Trágica alegria

Transe. viu uma toalha estendida, uma bela loira e uma balde cheio de cervejas geladas numa praia de águas cristalinas. O sol não atordoava, a fome estava saciada e um belo sorriso surgia aos pouquinhos. Ficou assim por um tempo, até notar que estava tudo estático demais. Ao tocar a face da loira, percebeu que tudo aquilo era um cenário de papelão.

Voltou a si de repente, e estava na mesma rua onde morrera o outro cara. Percebeu que toda a nojeira ensanguentada estava limpa, ou pelo menos parecia ter se deslocado do chão para sua cara e camiseta. A barriga de Cândido parecia um pouco mais gorda. O rosto do cadáver parecia um pouco mais magro.

Estava encarando a parede suja, como se esperasse ajuda divina dos tijolos. Mas por motivos que geraram tanto dinheiro e discrição ao traficante, naquela ruazinha sol e pessoas não apareciam

O morto foi parar num dos sacos de lixo, misturado a tantos outros restos de comida. Por incrível que pareça, a carteira do sujeito não sumiu após a briga que o matou. Cândido pegou também a jaqueta de basquete, e usou a água parada de um pneu pra limpar a sujeira da cara. A aparência era até melhor do que quando desceu do ônibus. Um pouco de alegria no meio da tragédia.

Fome violenta

A fome absurda fez com que o terror sumisse da memória. Não que lembrasse de muitas coisas desde que chegara, mas das poucas que poderia lembrar, agora já teria esquecido. Sua fome era mais forte que seu medo.

Olhou fixo para um boteco lá na frente, e pôs-se a caminhar até lá. O Sol voltou a queimar, a cegar e a soprar na nuca dele. Agora que o caminho parecia extremamente longo, parar na metade seria como deitar numa frigideira em chamas. Por mais que estivesse quase morto, não queria pagar pra ver o que poderia vir depois.

Deu mais 2 passos e o sol sumiu acima dos prédios. Por causa da cegueira e da surdez, não viu muito bem onde se metera. Parecia um beco sujo do centro, onde tinha acontecido uma briga feia. Talvez um drogado que tentou passar o traficante, ou vice versa. Só se sabe que da briga um dos dois não voltou.

Cândido sentiu o estômago vibrar com a cena. A poça de sangue soltava um aroma ferroso. A fome se tornou tão avassaladora que, sem se dar conta, começou a morder as feridas do morto.

Cutelo

Cândido é bem magro e careca. De olhos quase sem cor e pele seca como a de um lagarto. Veio fugido de algum lugar quente e pequeno, com uns 300 reais numa mochila castigada, e um pouco de vontade de ser alguém com mais dinheiro.

Mas a cidade grande é bruta com quem vem de fora sem malícia, principalmente em cantos baratos cheios de bebida. Sete cachaças acabaram com as poucas idéias que Cândido tinha, depois que um esbarrão e umas letras cuspidas abriram-lhe o pescoço numa piscada. A faca de serra abriu a tampa pro sangue na garganta dele esfriar. Cândido tingia as paredes enquanto tropeçava pela frente do bar, pedindo ajuda à qualquer perna que passava. Elas agitavam-se horrorizadas, protegendo as calças do sangue derramado.

-SSSSSSS...sssssssss..!

Cândido viu o chão piscar em preto e vermelho e enfiou a cara na calçada. Encarou bem de perto os ladrilhos que lembravam a cidade. Se afogou num mapa cheio de sangue.