terça-feira

Velozes e amarelos

Se aquela fome era do corpo, o corpo precisava morrer. Cândido, com essa idéia na cabeça, saiu em busca de algum prédio que não ligasse caso um mendigo envolto por um pano de mesa passasse pela portaria. Não importava quanto dinheiro houvesse na carteira, sua imagem era deploravel. Subornar alguém naquele estado era pedir para ser trancado na cadeia, numa jaula à altura do chão.

Muitos passos foram dados até ver a luz que cegava. Entupido de ódio, abriu a bocarra na direção do horizonte:

- Chama do inferno!!! Me fez virar bicho nessa cidade! Me fez ficar louco!
"Todos vocês são bichos."
- Eu comi GENTE seu filho da puta!
"Comeu gente, assim como sempre comeu galinhas e vacas e cabras de onde você veio. Como Eu disse, todos vocês são bichos."
- Vaca não conversa comigo! Galinha não paga meu salário! Porra, porque essa fome não passou se eu comi o que sempre comi?!?
"Porque Eu preciso de você desse jeito. O diabo não bota medo em ninguém chupando um osso de galinha."
-EU? Por que eu?? Porquê não o cozinheiro da lanchonete?? Ou a gorda que tava lá sentada??
"Você põe medo nas pessoas. Lá, no lugar de onde você veio, você era grão de areia. Aqui, você é um caco de vidro perdido na praia."
- Chega! Eu vô me matar!
"Você já está morto Cândido. Escolhi você justamente pela forma que você morreu."

Cândido gelou até onde dava. Passou a mão pelo pescoço e pela primeira vez sentiu a profundidade do corte que havia ali. Se estava vivo, ou como se fosse, só se fosse por intervenção divina.

Cândido pôs-se a correr em direção ao nada amarelo. Trombava em coisas que não via, talvez pessoas ou postes, e chorava. Sentiu sua perna esmigalhar, seus braços se partirem, a coluna sair do lugar, e num instante percebeu que estava no ar. O corpo mole rolou pelo chão, rasgando a pele e partindo os ossos que sobravam conforme tocava o asfalto.

Não podia ver os carros que agora tentavam desviar de seu corpo estirado na avenida. Cândido notou que não sentia dor e que realmente não tinha morrido. Como se o Sol fizesse uma piada de mal gosto, notou que ainda via o nada amarelo.

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